HISTÓRIA ANTIGA Era uma vez, lá na Judeia, um rei. Feio bicho, de resto: Uma cara de burro sem cabresto E duas grandes tranças. A gente olhava, reparava, e via Que naquela figura não havia Olhos de quem gosta de crianças. E, na verdade, assim acontecia. Porque um dia, O malvado, Só por ter o poder de quem é rei Por não ter coração, Sem mais nem menos, Mandou matar quantos eram pequenos Nas cidades e aldeias da Nação. Mas, Por acaso ou milagre, aconteceu Que, num burrinho pela areia fora, Fugiu Daquelas mãos de sangue um pequenito Que o vivo sol da vida acarinhou; E bastou Esse palmo de sonho Para encher este mundo de alegria; Para crescer, ser Deus; E meter no inferno o tal das tranças, Só porque ele não gostava de crianças. Miguel Torga Antologia Poética Coimbra, Ed. do Autor, 1981 NATAL À BEIRA-RIO
É o braço do abeto a bater na vidraça? E o ponteiro pequeno a caminho da meta! Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, A trazer-me da água a infância ressurrecta. Da casa onde nasci via-se perto o rio. Tão novos os meus Pais, tão novos no passado! E o Menino nascia a bordo de um navio Que ficava, no cais, à noite iluminado... Ó noite de Natal, que travo a maresia! Depois fui não sei quem que se perdeu na terra. E quanto mais na terra a terra me envolvia E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra. Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me À beira desse cais onde Jesus nascia... Serei dos que afinal, errando em terra firme, Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?
David Mourão-Ferreira, Obra Poética 1948-1988 Lisboa, Editorial Presença, 1988
FALAVAM-ME DE AMOR Quando um ramo de doze badaladas se espalhava nos móveis e tu vinhas solstício de mel pelas escadas de um sentimento com nozes e com pinhas, menino eras de lenha e crepitavas porque do fogo o nome antigo tinhas e em sua eternidade colocavas o que a infância pedia às andorinhas.
Depois nas folhas secas te envolvias de trezentos e muitos lerdos dias e eras um sol na sombra flagelado.
O fel que por nós bebes te liberta e no manso natal que te conserta só tu ficaste a ti acostumado. Natália Correia O Dilúvio e a Pomba Lisboa, Publicações D. Quixote, 1979
A abstracção não precisa de mãe nem pai nem tão pouco de tão tolo infante
mas o natal de minha mãe é ainda o meu natal com restos de Beira Alta
ano após ano via surgir figura nova nesse presépio de vaca burro banda de música
ribeiro com patos farrapos de algodão muito musgo percorrido por ovelhas e pastores
multidão de gente judaizante estremenha pela mão de meu pai descendo de montes contando
moedas azenhas movendo água levada pela estrela de Belém
um galo bate as asas um frade está de acordo com a nossa circuncisão galinhas debicam milho
de mistura com um porco a que minha avó juntava sempre um gato para dar sorte era preto
assim íamos todos naquela figuração animada até ao dia de Reis aí estão
um de joelhos outro em pé e o rei preto vinha sentado no
camelo. Era o mais bonito. depois eram filhoses o acordar de prenda no
sapato tudo tão real como o abrir das lojas no dia de feira
e eu ia ao Sanguinhal visitar a minha prima que tinha um cavalo debaixo do quarto
subindo de vales descendo de montes acompanhando a banda do carvalhal com ferrinhos
e roucas trompas o meu Natal é ainda o Natal de minha mãe com uns restos de canela e Beira Alta.
João Miguel Fernandes Jorge, Actus Tragicus Lisboa, Editorial Presença, 1979
Neste início das festividades natalícias, apresento os meus cumprimentos a todos os bloggers, desejando que este ponto de encontro se revitalize e supere os recentes acontecimentos. Apelo também a todos a que se não sintam inibidos pela "comment moderation" implantada. Estou seguro de que a mesma apenas visou moderar algumas intervenções menos felizes e que não há qualquer intuito pidesco da parte do nosso Zeus. Manter-se-á, acredito, a liberdade de criação e expressão que sempre o caracterizou, apenas sendo censurados os comments que entrem em conflito com os, também legítimos e importantes, direitos de terceiros. Um bom Natal para todos.
4 comments:
Ahahahahahahahahhahhahahaahhahahahahahahahhahahahahahahahhahahahahhahahhahhahhahhahahhahahahaahaahhhah...!!!!!
HISTÓRIA ANTIGA
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.
Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Miguel Torga
Antologia Poética
Coimbra, Ed. do Autor, 1981
NATAL À BEIRA-RIO
É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?
David Mourão-Ferreira, Obra Poética 1948-1988
Lisboa, Editorial Presença, 1988
FALAVAM-ME DE AMOR
Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,
menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.
Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.
O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.
Natália Correia
O Dilúvio e a Pomba
Lisboa, Publicações D. Quixote, 1979
A abstracção não precisa de mãe nem pai
nem tão pouco de tão tolo infante
mas o natal de minha mãe é ainda o meu natal
com restos de Beira Alta
ano após ano via surgir figura nova nesse
presépio de vaca burro banda de música
ribeiro com patos farrapos de algodão muito
musgo percorrido por ovelhas e pastores
multidão de gente judaizante estremenha pela
mão de meu pai descendo de montes contando
moedas azenhas movendo água levada pela estrela
de Belém
um galo bate as asas um frade está de acordo
com a nossa circuncisão galinhas debicam milho
de mistura com um porco a que minha avó juntava
sempre um gato para dar sorte era preto
assim íamos todos naquela figuração animada
até ao dia de Reis aí estão
um de joelhos outro em pé
e o rei preto vinha sentado no
camelo. Era o mais bonito.
depois eram filhoses o acordar de prenda no
sapato tudo tão real como o abrir das lojas no dia
de feira
e eu ia ao Sanguinhal visitar a minha prima que
tinha um cavalo debaixo do quarto
subindo de vales descendo de montes
acompanhando a banda do carvalhal com ferrinhos
e roucas trompas o meu Natal é ainda o Natal de
minha mãe com uns restos de canela e Beira Alta.
João Miguel Fernandes Jorge, Actus Tragicus
Lisboa, Editorial Presença, 1979
Neste início das festividades natalícias, apresento os meus cumprimentos a todos os bloggers, desejando que este ponto de encontro se revitalize e supere os recentes acontecimentos.
Apelo também a todos a que se não sintam inibidos pela "comment moderation" implantada.
Estou seguro de que a mesma apenas visou moderar algumas intervenções menos felizes e que não há qualquer intuito pidesco da parte do nosso Zeus.
Manter-se-á, acredito, a liberdade de criação e expressão que sempre o caracterizou, apenas sendo censurados os comments que entrem em conflito com os, também legítimos e importantes, direitos de terceiros.
Um bom Natal para todos.
A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade dos outros
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